Dois Cantos

5.12.05

O dia em que eu morri

O dia em que eu morri

Eu estava com 84 anos e, embora não me sentisse velha, as pessoas me tratavam como tal.
Não vou mentir para vocês, até porque, como não estou mais aqui, não preciso fazer média com ninguém: ser velha tem suas vantagens, sim! Eu podia dizer o que eu queria, pra quem quer que fosse. Não que eu me sentisse nesse direito, mas, vocês vão ver, com o tempo, as pessoas dão a você esse direito. O que também não significa que elas escutem muito o que você diz ou sigam seus conselhos, mas, pelo menos, a sensação de alívio que isso proporciona à sua mente, ao seu coração e a toda sua impaciência é incrível. Entretanto eu não abusava deste poder aparente que a idade traz. Como eu já disse, não acho certo que as pessoas falem o que pensam porque, muitas vezes, isso acaba magoando muita gente. Muita gente que muitas vezes não fez nada e acaba sendo atingido pelo erro dos outros. Mesmo que muitas pessoas mereçam ouvir tudo que queremos dizer.
Eu era uma octogenária e, mesmo sabendo que o mundo havia mudado, e mudava sempre, cada vez mais rápido, eu não desistia de correr atrás de saber o que estava acontecendo. Eu sempre gostei de aprender, de descobrir. Não era hora de parar ainda. Pelo menos não pra mim. Se bem que, com o passar do tempo, me dei o luxo de procurar saber das coisas que eu gostava mais. Talvez isso tenha me deixado mesmo um pouco restrita. Não que eu gostasse de poucas coisas, não. Eu gostava de muuuuita coisa! Mas acho que meu gosto não era assim tão popular.
Eu estava quase completando 85 anos e, mesmo já tendo visto, vivido e ouvido falar de muita coisa errada, eu ainda acreditava que as coisas iam mudar. Na verdade, na verdade, não sei se eu acreditava mesmo que as coisas iam mudar ou se eu queria muito que elas mudassem. Mas havia isso em mim. Essa coisa do inconformismo. Não insatisfação, inconformismo mesmo. Eu era feliz. Amava muitas coisas. Era do tipo que ria muito. Gostava de rir, gostava de quem eu era, de quem eu tinha por perto. Mas acreditava que o mundo estava em constante evolução. Estávamos todos lá para aprender, e melhorar.
Eu era uma jovem senhora de pouco mais de 80 anos quando, numa manhã, no meio de uma semana qualquer, eu não levantei. Não sonhei, não senti vontade de falar poucas e boas a ninguém, não corri atrás de saber alguma coisa interessante, não me vi inconformada com nada e não ri. Era um dia comum, de trabalho. As ruas estavam movimentadas como sempre. As pessoas andavam apressadas pra lá e pra cá. O tempo corria no seu ritmo habitual. Nenhuma notícia de grande valor no jornal. Nenhum acontecimento. A única diferença era que agora não havia mais eu. Mas isso não importava muito, porque nunca houve eu. Havia minhas idéias, meus pensamentos, meus ideais. Mas eles haviam para mim, e só. E já não importava o que havia para mim naquele momento, porque eu não sentia, não pensava e não idealizava mais nada.
No dia em que eu morri, o mundo permaneceu o mesmo. Assim como em cada dia que eu vivi.